agosto 19, 2004

cãntico negro

« Vem por aqui»- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem:«vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos laços,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguem.
- Que eu vivo com o mesmo sem-avontade
Com que rasguei o ventre de minha Mãe.

Não, não vou por aí!So vou por onde
Me levam os meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque repetis:«vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ír por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é facil!
Eu amo o longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes e os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras e tratados, e filosofos e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cãnticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguem.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguem me dê piedosas intenções!
Ninguem me peça defenições!
Ninguem me diga:«vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
È uma onda que se alevantou.
È um átomo que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-Sei que não vou por aí.

José Regio (1898-1969) Poemas do Deus e do Diabo
Brasilia Editora

4 Comments:

Blogger Unknown said...

As coisas díficeis são inimigas de Deus" e a distância entre este e o diabo é mesmo pequenina. José Régio no seu melhor. Bonito bolg e acima de tudo uma declamação do verbo amar.

12:30 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Bonito poema, Elisa.
Bem escolhido.

10:33 da manhã  
Blogger Filipe said...

Só não percebo porque se chama Cãntico Negro...
É bem luminoso esse poema...

11:00 da manhã  
Blogger Toze said...

Conheço este Poema há muito tempo...e é sempre belo o reler ! Boa escolha Elisa :)

Finurias
www.cagalhoum.blogspot.com

4:20 da tarde  

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